"Para ver o Mundo só há
dois píncaros:
ou o Himalaia ou o Chiado."Alexandre HerculanoLisboa é
uma questão nacional. A projecção internacional do país
passa pela dimensão cosmopolita da sua capital. Hoje, mais do que nunca,
coloca-se a tarefa de modernizar Lisboa, potenciando os recursos de que ela
dispõe. É imperioso reequilibrar a cidade no seu conjunto, tornando-a
mais habitável, mais humana, mais identificada com as suas gentes. Só
assim Lisboa poderá competir com as outras cidades europeias e evitar
transformar-se, quiçá definitivamente numa cidade periférica
da Europa.
Esta cidade é um complexo urbano que já não se contém
nos limites do concelho. É necessária uma nova dimensão
para Lisboa. Uma dimensão que permita aproveitar as suas diferenças
e reafirmar a sua tradição de lugar de chegadas e de partidas.
Para isso a cidade necessita de um "espelho" no qual se reveja e se
projecte internacionalmente; esse "espelho" é o rio Tejo. Impõe-se
igualmente fazer cidade nas periferias; e, mais importante, redescobrir o centro.
A memória da cidade tem um futuro. Lisboa é ainda, e é
fundamental que continue a ser, uma cidade de bairros, que se distinguem não
só pela sua arquitectura mas também porque têm uma vida
própria, sustentada por quotidianos de grandes e pequenas histórias
que possibilitam fortes e nítidas identidades.
O Chiado é, sem dúvida, o bairro mais importante da cidade. Para
conhecer Portugal é preciso conhecer Lisboa. E não se pode conhecer
Lisboa sem conhecer o Chiado. O Chiado é muito mais do que uma expressão
de ser e de estar. É uma área chave da estrutura de Lisboa, da
sua imagem e da sua memória. O Chiado era "meia Lisboa". Era
a nossa Regent Street, o nosso Boulevard des Italiens, a Gran Via, a Unter der
Linden, a Fifth Avenue de Lisboa. Território eleito pela moda, a gastronomia,
a arte, o teatro, a música, a literatura e a política, aqui se
fizeram leis para Lisboa e para o resto do país. Um pouco de toda a parte
entrou em Portugal pelo Chiado. A história do Chiado é também,
e principalmente, a história dos seus edifícios. Cada rua, cada
prédio, por vezes cada andar ou mesmo cada sala, tem a sua história
própria. As suas personagens. As suas curiosidades e particularidades.
As suas lendas.
A história do Chiado perde-se no tempo. Ainda hoje subsistem dúvidas
sobre a origem do seu nome. Seria a alcunha ou o apelido do poeta António
Ribeiro? Mas o espaço conhecido por Chiado cresceu ao longo dos anos.
No início um fragmento da antiga Rua das Portas de Santa Catarina, que
mais tarde se chamaria Rua Garrett, o Chiado abrangeu progressivamente o Largo
de Camões, a Rua do Carmo e a Rua Nova do Almada. Incluiu os três
antigos sítios de São Francisco, do Carmo e da Trindade. Estendeu-se
também às ruas Ivens, São Francisco e Vítor Cordon.
E integra ainda a Calçada do Sacramento e a Rua Serpa Pinto até
ao Largo de São Roque, onde principia o Bairro Alto. Chiado, local do
sagrado e do profano, tem quatro igrejas: a do Sacramento, a do Loreto, a da
Encarnação e a dos Mártires, onde, em 1888, foi baptizado
Fernando Pessoa. Na antiga paróquia dos Mártires administrou-se
em 1147 o primeiro baptismo depois da tomada de Lisboa aos mouros. Franz Lizt
tocou no Convento do Carmo. E a Procissão do Triunfo realizou-se todos
os anos no Domingo de Ramos até à implantação da
República.
À religiosidade imponente das suas igrejas o Chiado contrapõe
a elegância luxuriante das suas lojas. Tudo ou quase tudo existe aqui
em abundância, desde os ouros, pratas e pedras preciosas aos livros, passando
pela frescura e exotismo das flores e pela qualidade e requinte dos objectos
de uso pessoal e doméstico. E é difícil, se não
mesmo impossível, vestir e exibir condignamente os figurinos da última
moda, sempre disponíveis nas boutiques e sapatarias mais "chiques".
Porque, mesmo ao lado, podiam adquirir-se, entre outras boas iguarias, queijos
suíços, franceses ou dinamarqueses, faisões de alta escola,
espadarte fumado, salmão, azeitonas rutilantes, vinhos, licor de maracujá
dos Açores, frutos tropicais, queijo da serra ou trouxas de ovos do Alentejo.
Tudo isto e muito mais pôde ser adquirido, durante muitos anos, num edifício
nas esquinas das actuais Rua Garrett e Ivens. Ali esteve instalada a casa Jerónimo
Martins & Filho desde 1792. Primeiro armazém de víveres, depois
mercearia fina, o seu prestígio aumentou com o decorrer dos anos. Teve
como clientes os lares mais ricos de Lisboa. Foi precursora na importação
e exportação de produtos alimentares, em especial com a África
e o Brasil. Por alvará de 22 de Março de 1858 foi declarada fornecedora
da Casa Real. A lista dos seus devedores tinha a aparência de um índice
nobiliárquico, ao qual não faltavam duques, condes e toda a alta
sociedade de Lisboa. O próprio soberano figurou nela, com a real quantia,
para a época, de 250 528 réis. E Alexandre Herculano concedeu
à firma o exclusivo da venda do azeite produzido na sua quinta ribatejana
de Vale de Lobos. Do Jerónimo Martins dizia-se que era o "altar
ao estômago alfacinha". E afirmava-se que os dois maiores monumentos
da cidade tinham o nome de Jerónimos: um falava ao espírito e
o outro falava ao corpo.
A Brasileira, o Tavares e o Grémio Literário estão entre
os cafés, restaurantes e clubes do Chiado que se tornaram autênticas
instituições de Lisboa e de Portugal. Não eram apenas locais
de convívio: eram também centros difusores das novas ideias culturais
e políticas, pontos de encontro de artistas e de escritores, de intelectuais
e de homens de Estado. Almeida Garrett, Alexandre Herculano, Fontes Pereira
de Melo, Ramalho Ortigão, Guerra Junqueiro, Columbano e Rafael Bordalo
Pinheiro, António José de Almeida, Fernando Pessoa, Almada Negreiros,
Aquilino Ribeiro, Maria Helena Vieira da Silva: estes são alguns dos
nomes que, de uma forma ou de outra, passaram pelo Chiado e ficaram ligados
à sua história. Porém, houve um homem em especial a quem
o Chiado muito deve. O homem que mais falou do bairro, que mais o fez viver:
Eça de Queirós.
A relação de Eça com o Chiado exprime-se principalmente
em vários dos seus romances, onde encontramos muitas referências
aos locais mais conhecidos do Chiado, às suas "figuras típicas",
aos seus costumes e tradições. Mas o contributo de Eça
para o Chiado foi muito além da ficção. Sócio NÂș
19 do Grémio Literário, fundador e animador dos famosos "Vencidos
da Vida" que se reuniam no restaurante Tavares, ele já tinha sido,
com Antero de Quental, um dos organizadores das "Conferências Democráticas".
Estas realizaram-se no antigo Casino Lisbonense, situado no Largo da Abegoaria,
hoje Largo Rafael Bordalo Pinheiro. E será neste mesmo largo que Eça
receberá mais uma consagração, em 1939, através
da criação do Círculo Eça de Queirós.
Terreno privilegiado para o florescimento de inúmeras tertúlias,
o Chiado é também a zona por excelência das grandes instituições
culturais. Pode orgulhar-se de possuir, entre outras instituições,
um importante museu de pintura, a Academia Nacional de Belas Artes, o Conservatório
Nacional, o Teatro S. Luís e o Teatro Nacional de S. Carlos. Foi neste
último que o futuro hino da República e de Portugal teve a sua
apoteose, numa récita a favor do movimento nacional suscitado pelo Ultimatum.
Sim, é verdade: "A Portuguesa" nasceu no Chiado; Alfredo Keil
e Henrique Lopes de Mendonça moraram neste bairro. O Chiado não
desapareceu, apesar das sucessivas "mortes anunciadas". Ao longo dos
tempos passou por muitas transformações. Algumas trágicas,
como o incêndio de 1988. Mas tal como aconteceu depois do terramoto de
1755, o Chiado vai renascer. Para continuar a ser o coração de
Lisboa, o verdadeiro centro da cidade, onde toda ela desfila. É verdade
que já não passam os coches dos Duques de Bragança, dos
Marialvas, dos Sousa Calharizes e do Marquês de Valada. Já não
passam tantos políticos, poetas, cantores, fidalgos, boémios e
românticos. Para cada geração o seu Chiado, que sente por
ele uma carga afectiva e uma força nostálgica. Um espírito
romântico e anacrónico, onde Lisboa se procura e se encontra, permanece.
Será possível, novamente, fazer Chiado. Este é um espaço
marcado pela distinção, pelo requinte, pela nobreza, pela história.
Há que honrar a tradição e o espírito do Chiado
e de Lisboa.
Revitalizar o Chiado depois do incêndio de 1988 tornou-se uma tarefa nacional.
E isso implica a animação do espaço público, a promoção
de políticas integrais - e integradas - de oferta cultural, o incentivo
à fixação da função residencial e a dinamização
comercial. A renovação da identidade histórica e cultural,
em articulação com a modernização das suas múltiplas
actividades, foram e são objectivos estratégicos fundamentais
para garantir à cidade e ao bairro um desenvolvimento com futuro. Que
requerem para a sua concretização um compromisso estável
e prolongado entre o poder central, o município e as iniciativas da sociedade
civil. E estas iniciativas de pendem em muito de associações promissoras
entre o capital português e o investimento estrangeiro.